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Leia o capítulo “A Sentinela” do livro “O Vale das Falenas” de Douglas Nunes

Escritor Douglas Nunes. Foto: arquivo do autor

Olá meus amigos leitores. Esta semana estamos publicando um trecho do livro “O Vale das Falenas”, Edição de 2019. No capítulo “A Sentinela”, um momento da infância do personagem do livro, e as suas insistentes perguntas e dúvidas a respeito de Deus, da vida e da morte. Na sua inocência, sem consciência do significado do assunto “morrer”, no caso em questão do seu avô, Balduíno José de Barros*, Alberto considerava ao Pai Criador, uma ilusão, ou no sentido puro de criança, quando dizia: “Se Deus é o criador do  paraíso, porque não viveria Ele ali no Vale, seu paraíso infantil?”.

A SENTINELA
Douglas Nunes

Alberto, então, com cinco anos de idade, permanecia horas olhando o céu, contemplando sabe lá o que. Pela janela procurava observar e ouvir o canto dos pássaros e a festividade da natureza penetrando a casa. Brincava com a réstia do sol que se projetava do telhado e vinha pousar no chão… Ficava observando a poeira surgir de repente no meio da sala e se elevar lentamente. Tentava tocá-las; não conseguindo, abria a boca para abocanhar a poeira que o ar sustinha.

            Certa vez, um pássaro pousou na janela da sala e, durante alguns minutos, ali ficou bicando a madeira de um lado para outro. Alberto sentado no chão permaneceu quieto, em silêncio como se soubesse que ela poderia voar se fizesse qualquer movimento. Durante alguns minutos permaneceu a observar, até que o passarinho voou. Ele rapidamente se encaminhou até a porta para acompanhar o seu voo. Depois voltou como se procurasse perguntar algo sem, no entanto, conseguir. Inquieto, calava-se. Olhava-nos e apontava a janela, a grande tela que se abria para a paisagem. Depois, retornando até a porta, fez com as mãos como se fossem asas, demonstrando que o passarinho voara. Depois se voltou para suas brincadeiras com os ossinhos e os jatobás em casca ou inteiros.

Um dia Alberto acordou e percebeu movimentos diferentes na casa. Desceu da rede, sentindo a terra batida de seu quarto e se encaminhou para a sala. Ouviu choro e vozes e estancou por um momento. Olhou pela janela e sentiu a aragem da manhã que reconfortava o ânimo. Apesar da idade, Alberto percebeu que algo não ia bem e alguma coisa estava acontecendo, pois quem chorava era a sua mãe.

— Porque minha mãe está chorando?” – pensava ele. E veio também nele a vontade de chorar…

Seu pai, no entanto, vendo-o já de pé, chamou Geraldina e pediu algo a ela.

Geraldina se aproximou, enxugando as mãos. Ergueu Alberto, pegou umas talhas e roupas e saiu com ele para a casa de Antonio José de Deus Carvalho, pai de Benedito, não muito distante.

Naquele mesmo dia, por volta das quatro horas da tarde, Geraldina trazia-o de volta e arrumado. Foram todos ao velório de seu avô, Baldoino José de Barros, que falecera de madrugada. Os pais de Josina Maria residiam do outro lado do riacho das Guaribas, mais próximo da cidade de Picos, entre a estrada da Cipaúba e o Morro de Santa Luzia.

Enquanto caminhavam, já próximos da casa, um coro longínquo de vozes tristes dos fiéis se misturava com a algazarra dos pássaros no meio da caatinga. Enquanto Alberto ouvia a alvoroço dos pássaros, ouvia também os lamentos de sua mãe. Para uma criança de cinco anos de idade, aquilo mais parecia uma cantiga… Como se houvesse música ladeando as plantações e elevando aos ares os pedidos ao Santíssimo que lhe desse o perdão. Pois era essa a súplica que se ouvia da toada.

Na sua precocidade, sabia que algo diferente ocorrera, mas o quê?  Ninguém falara nada. Se alguém abria a boca para falar, logo as lágrimas desciam e embargavam a voz… Os lamentos de sua mãe bem que diziam isso. Teria sido a vaca Estrela o motivo? Não, ela não choraria pela vaca.

 As vozes tristes aumentavam à medida que se aproximavam, e Alberto não sentia medo, mas intrigava-se cada vez mais. No seu íntimo indagava, na sua criancice, sobre o que se passava.

Teria coragem e perguntaria a Geraldina, que segurava sua mão:

— Porque todos choram? Aonde vamos, tia Geraldina? Por acaso vamos ver alguém, na casa de alguém, quem?

Geraldina olhou a criança e, enxugando uma lágrima, respondeu:

— Sim, meu filho. Vamos à casa de seu avô. Seu avô morreu.

Ele não compreendeu de pronto o sentido das palavras de Geraldina. Mas ficou a pensar: Seria a morte igual a que morre uma cabra ou um capão no terreiro? Eles ficam lá estirados, parados, sangrando e depois é tirado o couro ou depenados. Seria isso a morte para uma pessoa?

— Meu avô morreu?

— Sim, Alberto. O pai de sua mamãe.

Alberto sentiu um misto de piedade e temor. Piedade por tratar-se de alguém da sua família, não mais um estranho ou um bicho qualquer. E temor por aquele que ele o veria morto. No entanto, seguiu a passos firmes na companhia de Geraldina.

Lá chegando, compreendendo a morte na rede estirada no meio da sala, quando a sua avó Ana veio abraçar a sua mãe e a ele também, sentiu as lágrimas quentes que escorriam do rosto da velha mulher. Então, sentando-se numa cadeira ao lado, passou a meditar.

— Não seriam em vida as oportunidades do bem? Estou por certo menosprezando a oportunidade desse homem que se foi? Porque agora estaria ele ali deitado, sem se mexer, calado, por quê? O que fez ele? Alguém por acaso o matou, como fez o tio Joaquim quando, há uns dias, matou a cabra branca com o machado?

Foram essas as ingênuas impressões deixadas por Alberto depois da visita ao velório de seu avô. Naquele momento, depois de muito se surpreender com o ser vivente, apesar da sua idade, Alberto observara as feições da existência ali deixadas no interior da rede e indagava sobre assuntos variados.

De volta do campo-santo da Cipaúba, já noitinha, Alberto ainda vinha refletindo sobre o que poderia ser a morte. Enquanto todos seguiam rezando ou falando de outros assuntos, ele indagava de si mesmo sobre a vida e sobre a morte:

— Quando vivo, muito fala, conversa, sorri, chora, lamenta, festeja, dança, corre, caminha, trabalha. E quando morre se faz ausente, indiferente, padecido e disforme. O que é a morte? Porque Deus permite a morte?

Então, já em casa no dia seguinte, vendo a mãe mais calma, apesar dos olhos encarnados de tanto chorar, ele dirige-se a ela:

— Era meu avô, naquele da rede, mãe?

— Sim, meu filho. Era o meu papai. Deus o levou.

— Mas por quê?

— É a vontade de Deus, meu filho.

Ele ainda insistiu.

—Minha mãe, porque pessoas morrem?

Ela, surpresa, olhou-o demoradamente e depois, pacientemente, deu lhe uma longa explicação, dizendo que existem vários tipos de morte, que todos se encontram na terra com um propósito, com uma missão, seja para aprender algo diferente, seja para ajudar alguém que necessita, ou até mesmo para ensinar, como veio Cristo, e tudo no final nos leva à melhora. E disse das mortes chamadas naturais, como na velhice, por exemplo, que simplesmente a pessoa chega ao fim de sua viagem… ou aquelas provocadas, essas são mais difíceis o perdão de Deus.

— Às vezes Deus precisa fazer coisas para que mais tarde tudo dê certo. Quando isso acontece, somente o tempo pode comprovar a vontade do Pai.

            Alberto, atento, recebeu todas aquelas palavras. Ouviu-as todas e parecia indagar os motivos, mas permaneceu calado.

            Dona Josina, que era conhecida como “Dona”, procurava distraí-lo, fazendo algumas peças de brinquedo de ossinhos ou então de barro. Fabricava com ajuda de Serena, muitas peças representando bois de barro, com seus chifres, suas caudas e até os bezerros. Chamava outros meninos das redondezas para brincarem com ele. Os meninos de sua idade juntavam outros brinquedinhos de ossos e palitos e faziam deles os cavalinhos e montarias e repetiam o som característico das corridas.

            Outras vezes olhavam as sobras dos bois de barro e faziam, junto aos ossinhos, um grande rebanho e, aos gritos:

— Ehhhhbooiiiii, eehhhhboooooiiiiii.

Depois rebuliçavam a terra como se os bois passassem por ali fazendo grande movimento. Ficavam espiando a boiada feita de barro e ossinhos no meio da poeira da sala ou da cozinha, ou então no meio da areia do terreiro, junto com as galinhas, ou no curral entre as cabras.

*Sem o registro correto de sua morte, provavelmente pelo ano de 1918.